terça-feira, março 25

Interrompo a série "Telas" para divulgar um texto que li "ainda" sobre a relação "aluno/professor" e que achei de uma inteligência ímpar!

daqui



De como eu, professora, chorei, enxuguei as lágrimas e voltei a chorar

Gosto do que faço e esmero-me na preparação da aulas. As horas são tardias, mas teimo em construir materiais pedagógicos adequados às turmas que estão sob a minha responsabilidade.

É que nem sempre os manuais servem para o efeito; muito menos as fichas que existem noutros livros e noutros lugares, elaboradas para outras situações que não as que os meus alunos e as minhas alunas vivem naquele preciso momento. Já foi o tempo em que me perdia com caixinhas e cartolinas coloridas. O dinheiro não chega para tudo e passei a ser mais comedida. Continuo a fotocopiar o que me parece interessante e depois recortar para fazer montagens à medida dos meus meninos e das minhas meninas. Há também o esmero nas apresentações em powerpoint e no treino solitário da leitura expressiva.

Há que preparar tudo, não permitir que a linguagem esteja nem abaixo do nível desejado nem acima a ponto de ser tornar opaca, hermética, incompreensível. Eles sabem da minha paixão pelo mundo do Verbo e eu aproveito a flexibilidade e a curiosidade para lhes falar de coisas outras e entrar, de mansinho, pelo mundo dos valores.

Leio com atenção os textos que me entregam e que estão para além do programa a ser cumprido. Poemas, contos, cartas de amor. Eles e elas exigem uma resposta honesta e argumentada. E, por isso, eu avanço pela noite dentro. Como tantos outros milhares de colegas professores.

Foi de coração aberto que regressei ao 3º ciclo do ensino básico, depois da provação do desemprego sem direito, ainda que inconstitucional, ao subsídio devido. Uma oferta de escola, para substituir uma professora que deu em doida com a nova geração. Era uma professora antiga e por isso, achava eu, mais susceptível a indignações e chiliques afins. Muni-me de leituras do foro da psicologia para enfrentar um punhado de adolescentes com as hormonas aos trambolhões.

Descobri, porém, um mundo muito cão. Turmas de fugir. Entrei na sala, pedi para entrarem com preceito, mandaram-me para o caralho. Sim, assim, com todas as letras. Desculpem, podem repetir?, acho que não ouvi bem... P'ró ca-ra-lho. O dedo espetado, a mão nas partes, o riso, a galhofa... Mandei-os para a rua e marquei-lhes falta. Fui chamada ao Conselho Executivo e ali me disseram que não podia mandar alunos para a rua por dá cá aquela palha. Estupefacta. Petrificada. Sentar com os pés em cima da mesa, recusar-se a sentar com preceito, escarrar para o chão, chamar a professora de monhé e mandá-la para o caralho, não é propriamente aquela palha. Que eles são uns marginalizados, que muito aguentam eles em casa, que na escola exprimem o que lhes vai na alma, pais presos, traficantes ou drogados, mães prostitutas, CPCJ à perna. Uma desgraça. Pois, mas eu não sou psicóloga nem assistente social. Professora. Tenho um programa a cumprir e quero, muito, que eles descubram as maravilhas da língua francesa. Falei com os directores de turma. Que era assim em todas as aulas, com todos os professores. Uma luta diária por uma causa talvez perdida.

Aula seguintes, a começar do zero. Estronsa, chamavam-me eles. Quem me conhece reconhece o trocadilho, certo? Reforço positivo, reforço positivo, reforço positivo... eu bem queria aplicá-lo. Mas como, se não econtrava nada de positivo?
Decidi-me pelos materiais feitos para eles. Algumas directas, um investimento extra e, voilà, rap francês, cartolinas, fotos, cores. Quando entrei na sala, havia alguns papéis no chão. Segui o conselho de uma colega experiente e apanhei-os, para dar o exemplo. Não resultou. Isso, limpa a merda que nós fazemos. Falta disciplinar e comunicado ao Director de Turma. Não vale a pena, estronsa, que isso não serve para nada, você sabe muito bem disso. Nem para a rua nos pode mandar!... Rasgaram as cartolinas que lhes dei, que não iam levar lixo para casa. Atiraram cascas de pevide para o chão. Saltaram. Gritaram.

Eu sou um vulcão que pouca gente conhece. Consigo dominar os sentimentos e manter uma transparência calma e quase imperturbável. O ascendente em gémeos adocica o temperamento fogoso do meu signo. Mas nesse dia a dor foi tão profunda, o desespero tão intenso, a frustração tão real que as lágrimas romperam. E enquanto eles riam, eu chorei. Chorei muito, pela primeira vez em toda a minha vida de professora. Chorei muito, pela primeira vez em toda a minha vida de adulta em público. Chorei por mim e chorei por eles. Chorei por começar a acreditar que eram uma causa perdida. Chorei por saber que estava ali uma porção do futuro.

Não sou das que se deixa desistir facilmente. Sou carneiro. E isso diz tudo. Na aula seguinte, enxuta, experimentei outra estratégia. A dos afectos em simultâneo com o desprezo total. Meus amigos, querem aprender não querem aprender é convosco. Para o ano eu não estarei cá e recuso-me a ficar doente como a vossa professora anterior por causa de um punhado de gente que não merece um peido. Calaram-se, esbugalhados. Não é todos os dias que uma professora fala assim. E mais, fazemos um pacto. Vocês tentam aprender alguma coisa e eu ensino-vos outras, assim à margem. Queremos saber como engatar gajas no verão, stôra. Queremos aprender palavrões. Muito bem. E ficam com o meu contacto no messenger. Comigo falam só em francês.
À noite já eles me tinham adicionado às suas contas. Bom sinal. Depois, aprenderam o bonjour, o excusez-moi, o pardon, o merci, o je peux entrer, o s'il vous plaît, e, também, t'es belle, je t'aime, e, ainda, palavras como putain, merde, con ou connard. Fui assistir aos jogos de futsal de uns, passei a almoçar com outros. E, depois, numa aula, vieram ter comigo e, com uma palmadinha nas costas, que eu era fixe e que tinha passado no teste deles. Aprovada com distinção. Depois foi mais fácil. A ordem restaurou-se; a aprendizagem a passo de caracol.

Na reunião final tinha bastantes negativas para dar. Não vale a pena o choradinho, amigos. Quem sabe sabe, quem não sabe azar. Pois é, madame, tem razão, para o ano vai ser melhor. Afinal, francês até é fixe!

Reunião de conselho de turma. O aluno A tem 4 negativas, há que levantar uma nota para poder passar. Vai a votação, sobe a Francês. Não pode, impossível. Pode sim, a mudança de professor a meio do ano causou intabilidade. Foi a votação. Passou. O aluno B está a atingir a idade limite do ensino obrigatório. Pedagogicamente recomenda-se a aprovação. Segue Francês. Não pode. Pode sim. Instabilidade do corpo docente. E o aluno C, e o aluno D e assim por diante. Mas, ó colegas, eu estou parva, vocês estão parvos ou estamos todos parvos? É assim, senão chumba na reunião do pedagógico e chamam-nos em Agosto. E a gente vem e consolida a argumentação, não? Não, porque as directrizes do Ministério são muito claras.

...É preciso dizer mais alguma coisa?

24 comentários:

APC disse...

Isabel a questão do ensino é muito complexa. Ou tornaram-na complexa. Por um lado o desleixo dos pais, por outro o queixume constante dos profs de que estou verdadeiramente farto. A sociedade que criámos é obviamente uma sociedade que não aposta nos afectos. os filhos são deixados ao deus-dará nas creches, OTL´s e afins, outros lançados nas ruas até que os pais cheguem, que o dinheiro não dá para esses "luxos"; depois o queixume constante e desconstrutivo de uma classe que é incapaz de se entender. reopara, para que precisam os profs de 14 sindicatos? que força pode ter uma classe tão dividida? nenhuma, pois então. a acrescentar a isto a não apresentação de alternativas ao modelo actual de ensino. tudo o que vejo e ouço os profs reclamarem é menos trabalho e mais dinehro. ainda outro dia aquando da manif, ouvi uma impoluta decerto prof queixar-se que tinha de trabalhar até às 17.30. Porra, e os outros que trabalham até às 18 e mais e ganham o ordenado mínimo? Os profs perderam crédito por culpa própria e deixaram claramente de ter o apoio da grande maioria da população. eu sei que não estou a ser politicamente correcto e parece haver na blogosfera quase medo de chamar os cornos pelo nome. Admito que nem tudo vai bem no ME, mas as reformas eram necessárias. se são ou não as melhores é uma questão que o tempo se encarregará de demonstrar. nota de rodapé: eu nunca votei PS, nem votarei. considero-o um partido de direita e eu não sou de direita, mas não sou parvo.
Querem respeito, ganhem o respeito, não o queiram impor à custa da burrice e do silêncio de muitos de nós.
beijos

take.it.isa disse...

Zé, não sendo Prof. não conheço outra classe de trabalhadores (a não ser as "domésticas") que levem tanto trabalho para casa. Passam os fins de semana a corrigir testes, noitadas...

Se são ou não bem pagos, parece que em relação ao modelo finlandês até são (sic)...no entanto, o texto que aqui coloquei tem a ver com a difícil tarefa de ensinar os alunos e com a excelente estratégia (opinião pessoal) desta professora.

beijos

Denise disse...

Cara take.it.isa,
como referi no meu RG, não é um texto de que me orgulhe particularmente. São as palavras possíveis de quem sabe, por experiência própria, o quotidiano de muitas salas de aulas. É a tristeza de quem olha para o estado em que está uma grande porção da juventude dos nossos dias.
Quanto ao comentário do Spectrum, limito-me a concordar apenas que os professores não são uma calsse unida. Ou melhor, não eram. Porque a reacção à nova política educativa veio provar o contrário...
Quanto aos restantes argumentos, abstenho-me. Estou cansada. Da nítida falta de informação. Da ignorância em ue alguns se deixam ficar....
Um abraço.

take.it.isa disse...

Denise, tal como referi no comentário anterior, foi a atitude tomada que achei excelente. Julgo que a maior parte dos Professores fica tão cansada só de dar as aulas normais que nem se dá ao trabalho de adoptar novas estratégias.

Abraço

Maria disse...

Percebo o cansaço da professora. Até sou capaz de perceber a estratégia que desenhou e a táctica que cumpriu. Mas não concordo. Não é possível descer ao nível do "peido" para se poder dar uma aula seja do que for.
Não é possível, simplesmente. E o problema começa é dentro de cada casa, com o respeito (a falta dele) pelos pais, pelos mais velhos.
A educação dá-se em casa. a escola tem outros objectivos.
Esta ministra tem uma única vantagem em ter passado pelo ministério: conseguiu unir uma classe que, até agora, tinha sido impossível de se unir.
Também eu estou cansada......

Beijos, Isabel

take.it.isa disse...

Maria, se analisares a questão através da táctica "dos afectos em simultâneo com o desprezo total", talvez não te seja tão chocante.

beijo

Denise disse...

Olá Maria,
Na verdade não foi bem essa a palavra que eu utilizei com as criaturas. Usei-a no texto como configuração retórica do desejo de a ter proferido. Com @s menin@s usei uma palavra menos agressiva, mas suficientemente forte para criar o abanão pretendido. Na altura em que escrevi o post estava longe de imaginar a divulgação do mesmo na blogosfera. Por isso não me preocupei muito com a fidelidade aos pormenores da realidade empírica. Foi meu intuito pintar a ideia, os sentimentos e o grosso da questão.

Não quero com isto dizer que tudo o que eu faça esteja certo, até porque há aqueles momentos em que perdemos a cabeça e dizemos ou fazemos coisas que não queríamos. Mas não foi este o caso.
... eu não disse «peido». Preferi outra palavra. Mas escrevi «peido».
... o que não é exactamente a mesma coisa ;-)

Um abraço

Ana disse...

A Denise teve a inteligência, a presença de espírito e a força de dar a volta a uma situação que leva muitos professores à depressão, à baixa por doença psicológica, a procurar a requisição numa fuga desesperada ao confronto com os alunos. Mais, teve a generosidade de se importar, de chorar não só por ela como também por eles. E penso que a força dela advém precisamente do afecto e da inteligência emocional. A inovação, a coragem de explorar novas estratégias, nunca é consensual, envolve sempre alguma polémica: neste caso, achei louvável. Foi por isso que o divulguei no meu blogue, O Lobo Leitor, e daí parece ter-se criado uma bola de neve em torno do testemunho da Denise. As minhas desculpas Denise, por qualquer inconveniente que te tenha causado. E a minha admiração também.
Ana Tarouca

poesis disse...

«Momentos selvagens de autoficção e de puro delírio na reconfiguração do real (de leitura não aconselhada a incompetentes, inábeis, inaptos e inexperientes em tropos de linguagem, de pensamento e outros que tais)»
Não sei se por ignorância, se por distracção, se por pura maldade, vejo que se mistura aqui água com azeite. Antes de comentar o post, antes de comentar os comentários, ANTES DE TRANSCREVER UM TEXTO DE UM BLOG, - descontextualizando-o -, que tal se lessem a descrição do blog? Está transcrita logo no início do meu comentário. E quem não souber o que isso significa, pergunta, informe-se ou... silencie a sua ignorância!
PIOR QUE O PLÁGIO É A DESTRUIÇÃO DO SENTIDO DE UM TEXTO RETIRANDO-O AO CONTEXTO! o plágio ainda é, de certa forma, uma homenagem ao autor; a descontextualização pode rondar a difamação...
Caspita!

Denise disse...

Querida Ana,
Obrigada pelas tuas plavras. Não peças desculpas porque nada há a desculpar. Sabemos muito bem como funciona a blogosfera e, na verdade, estou-me nas tintas para o que possam pensar sobre o que escrevo. Os textos valem o que valem.
E já sabes que a admiração é mútua ;-)
Beijinhos


Poesis,
Agradeço a lucidez da transcrição do subtítulo do meu Blogue e a recontextualização do meu texto que aqui vai causando tanta polémica.
Não se enerve assim tanto. Só um pouquinho, à cause da ignorância ;-)
Um abraço

W. C. Fields disse...

Spectrum:
Pela amostra que tem no vídeo do telemóvel, talvez consiga imaginar o que é estar-se mergulhado naquele ambiente de aulas das 8.30 às 17.30! Mais uma infinidade de tarefas (sobretudo burocracia) e o trabalho que os professores levam para casa. Quem está até às 18 e ganha o ordenado mínimo está a ser vergonhosamente explorado, neste país onde os ricaços que fogem ao fisco, e os políticos, nadam em dinheiro!
Os professores queimaram as pestanas, são trabalhadores com licenciaturas e profissionalizações, como os médicos e os magistrados, também na mira deste desGoverno!
Desempenham uma função altamente desgastante, como pode avaliar por este texto lapidar! Se este texto ainda o deixa a debitar essas banalidades ÔCAS, então presumo que seja apenas um invejoso.

W. C. Fields disse...

Ou um teórico flower-power...

W. C. Fields disse...

Eh pá!!! Pára tudo! Fui ver o blog do Spectrum, li um bocadinho do post mais recente chamado (In)dolências, e quero retirar tudo as palavras que lhe dirigi!
Faça de conta que não lhe disse nada, ok?
É que até eu, que sou um bocado para o atrasado mental, tenho os meus limites!!!!!
Pôrra, pôrra, pôrra, pôrra!!!!!!!!!
Agora vou tomar um banho e logo quando vier do trabalho vou correr 10 quilómetrozitos para suar o resto!!!!!
Pôrra, pôrra, pôrra, pôrra!!!!!!!!!

intruso disse...

pois, é dramático...
:(


p.s.
(mas o mundo é igualmente cão noutras áreas/profissões... se é...)


bjs
:)

paulo disse...

Tomando o comentário do Intruso, concordo que há profissões difíceis, muito difíceis, esgotantes mesmo, quer fisicamente quer intelectualmente. Quanto à profissão de docente, já se escreveu tanto sobre ela e sobre a questão do ensino que também me confesso cansado de ouvir que os professores só querem aumentos, trabalhar menos, não querem ser avaliados, etc. Acho que começarei a dizer mal d@s enfermeir@s, d@s bancári@s, d@s advogad@s, d@s jornalistas, d@s médic@s, d@s merceeir@s, d@s famacêutic@s, d@s gestor@s, dos políticos, d@s autarcas, d@s polícias, d@s psicólog@s, d@s artistas, recorrendo ao mesmo tom e abertura de espírito, porque afinal nada é mais fácil que criticar em abstracto quando não se conhece muito bem a realidade.

W. C. Fields disse...

Quem se vai rindo são os governantes, que enquanto o povo anda a malhar-se entre si, não malha neles!
E sim, Paulo, proponho semanas de ódio em relação a todas as profissões. Podemos começar por exemplo pelos controladores de tráfego aéreo, a seguir pelos camionistas, depois passamos aos futebolistas, continuamos com os delegados de propaganda médica e daí para os repositores de supermercado! Os técnicos de análises clínicas e os cirurgiões terão duas semanas de ódio. Porquê? Não faço ideia. Tudo isto é aleatório. Morte aos toureiros!

paulo disse...

RockyBalbino, demais. E apoiado!

Denise disse...

Já somos três! Alinho nessa também!

take.it.isa disse...

vocês estejam à vontade!!

querem que vos sirva um cafezinho?

:)

paulo disse...

Sim, um café não era mau. pode ser curto, com um cheirinho (um cheirinho bom...), em chávena fria, com adoçante, um palito "la reine" para acompanhar e... um copinho de água, faxavor. Obrigadinho!

:)

take.it.isa disse...

é p'ra já!

. disse...

Já agora o meu pode ser duplo, cheio, em chavena estupidamente fria e sem açucar, por favor...
Interessante o teu blog. Vou voltar mais vezes. e até pode ser que da proxima faça um comentário de jeito, quam sabe...

P.S. - já agora, se puder ser tambem uma água das pedras levissima bem fresca, agradeço...

. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Denise disse...

Para mim, com um pinguinho de leite e açúcar amarelo :))))